Auto-organização democrática
Horas antes da reintegração de posse da polícia militar no bairro do Pinheirinho em São José dos Campos, os moradores estavam em assembleia. Não por acaso, algumas falas relembraram símbolos de resistência da história brasileira como Canudos e o quilombo dos Palmares. Cada vez que alguém trazia à tona alguma memória dos últimos oito anos de ocupação, os moradores entoavam palavras de ordem de resistência seguidas de rostos de emoção e choro.
Essa assembleia foi excepcional. O cotidiano do Pinheirinho é baseado em assembleias ordinárias semanais nas quais todo tipo de problema concernente à organização do bairro é discutido. A área que abriga cerca de 1800 famílias possui uma auto-organização com suas próprias regras internas cujas determinações não são ditadas por um poder centralizado, mas sim pelos próprios moradores; democracia imposta não por uma diretriz burocrática, mas por participação direta das famílias.
Tal estrutura não se construiu a partir da boa vontade de líderes comunitários ou de políticas partidárias. Ela nasceu da necessidade de organização. Desde 2004 os moradores do Pinheirinho sofrem a ameaça de um ataque da polícia. Desde 2004 o senhor Naji Nahas, proprietário do terreno, exige a desocupação. Desde 2004 a prefeitura do PSDB de São José dos Campos encara o “problema” do Pinheirinho como um caso de polícia. Nesse meio tempo, o número de habitantes cresceu, os lotes viraram casas, comércios e igrejas, e o terreno abandonado por mais de 30 anos virou um bairro.
Repressão à luta política
Agora, no começo de 2012, o poder público decide utilizar seu aparato militar para reprimir a população. Aparato militar que possui em seu brasão 18 estrelas, cada uma comemorativa de grandes acontecimentos de sua história. Mais uma vez não por acaso, a oitava estrela representa a “vitória” do exército brasileiro sobre a população de Canudos. Provavelmente após a reintegração de posse do Pinheirinho o brasão da polícia militar acrescentaria mais uma estrela…
O que está em jogo há oito anos em São José é a disputa pelo direito à moradia, à liberdade de organização política, à justiça social e a luta contra a desigualdade econômica e todas suas consequências degradantes; em última instância é a luta pela dignidade humana. Todas as contradições que a sociedade brasileira apresenta se expressam na miséria dos moradores do Pinheirinho. A maioria é constituída de operários de fábricas próximas e empregadas domésticas, bem como idosos e diversas crianças que nasceram e cresceram lá. Não à toa, diversos moradores são negros. Quando em 2010 a polícia invadiu o bairro a procura de armas roubadas do batalhão da PM, um soldado perguntou a um garoto de oito anos onde estariam as armas. Sua resposta foi clara, disse que não tinha nem luz nem água em casa, como teria armas?
Uma guerra anunciada
Entretanto o que alguns setores da sociedade tentaram demonstrar é que o que está em jogo é o direito à propriedade privada. Como sobrepor o direito à propriedade privada de um senhor aos direitos mais básicos de quase 10 mil vidas humana? É uma questão de ponto de vista jurídico ou de posicionamento político?
Nessa discussão alguns setores da sociedade penderam para a questão do ponto de vista jurídico. Expressaram que a ocupação para moradia na verdade era uma invasão criminal, que os “invasores” criaram um exército assassino para defender algo que não lhes pertence. Como se o exército de Brancaleone simbolizasse a criminalidade em toda a sua completude. Cada vez mais o caráter político e social da situação perdeu espaço para o caráter criminoso. O que os quarenta homens do Pinheirinho desejaram mostrar com seus canos de pvc, paus de madeira com pregos, coletes à latas de lixo e capacetes precários é a correlação de forças extremamente desigual comparada aos cerca de 1700 homens que se direcionavam com canil, fuzis, espingardas, bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral, etc.
Quando tentava adentrar o perímetro criado pela PM em torno do bairro, me deparei com dezenas de soldados carregados de armas impedindo a passagem de automóveis. O clima era de guerra. Os moradores estavam aptos a resistir até morrer. Alguns falavam em atear fogo no próprio corpo caso a reintegração fosse efetivada. Esse espírito não foi motivado pela orientação oportunista de partidos de esquerda como PSOL e PSTU como algumas pessoas querem acreditar. Ele foi causado pela necessidade de luta dos moradores, de defesa da única coisa que eles possuem.
Caso isolado ou miséria histórica?
O panorama instaurado nos ensina que o Pinheirinho não é um caso isolado. Só em São José existem dezenas de ocupações ditas ilegais. Pelo Brasil afora diversos movimentos sociais que lutam pelas mesmas reivindicações são constantemente reprimidos de forma violenta por uma das polícias mais assassinas do mundo inteiro. Frequentemente o poder público desrespeita a Constituição brasileira ao não fazer valer concretamente vários direitos sociais consagrados constitucionalmente. E ao desrespeitar alguns direitos, indivíduos são beneficiados em detrimento da massa, cuja miséria é historicamente reafirmada.
A questão principal gira em torno da dicotomia conjuntura/estrutura. A miséria do povo brasileiro é um problema de conjuntura ou de estrutura? As ações exacerbadas que se repetem incessantemente em ações políciais são problemas de conjuntura ou de estrutura? A necessidade de ocupações de terras alheias pela reformulação da função social da área é um problema de conjuntura ou de estrutura? A desigualdade e a injustiça social é um problema de conjuntura ou de estrutura?
Em defesa da luta dos moradores do Pinheirinho, cito uma frase presente no “Manifesto dos moradores do Pinheirinho aos Soldados” que estava sendo distribuído na frente do bairro, às quatro da manhã da terça feira do dia 17 de janeiro, uma hora antes do batalhão militar iniciar o banho de sangue: “Quando o poder é tirânico, a revolta é um dever.” São Tomaz de Aquino.
Guilherme Kranz
Essa assembleia foi excepcional. O cotidiano do Pinheirinho é baseado em assembleias ordinárias semanais nas quais todo tipo de problema concernente à organização do bairro é discutido. A área que abriga cerca de 1800 famílias possui uma auto-organização com suas próprias regras internas cujas determinações não são ditadas por um poder centralizado, mas sim pelos próprios moradores; democracia imposta não por uma diretriz burocrática, mas por participação direta das famílias.
Tal estrutura não se construiu a partir da boa vontade de líderes comunitários ou de políticas partidárias. Ela nasceu da necessidade de organização. Desde 2004 os moradores do Pinheirinho sofrem a ameaça de um ataque da polícia. Desde 2004 o senhor Naji Nahas, proprietário do terreno, exige a desocupação. Desde 2004 a prefeitura do PSDB de São José dos Campos encara o “problema” do Pinheirinho como um caso de polícia. Nesse meio tempo, o número de habitantes cresceu, os lotes viraram casas, comércios e igrejas, e o terreno abandonado por mais de 30 anos virou um bairro.
Repressão à luta política
Agora, no começo de 2012, o poder público decide utilizar seu aparato militar para reprimir a população. Aparato militar que possui em seu brasão 18 estrelas, cada uma comemorativa de grandes acontecimentos de sua história. Mais uma vez não por acaso, a oitava estrela representa a “vitória” do exército brasileiro sobre a população de Canudos. Provavelmente após a reintegração de posse do Pinheirinho o brasão da polícia militar acrescentaria mais uma estrela…
O que está em jogo há oito anos em São José é a disputa pelo direito à moradia, à liberdade de organização política, à justiça social e a luta contra a desigualdade econômica e todas suas consequências degradantes; em última instância é a luta pela dignidade humana. Todas as contradições que a sociedade brasileira apresenta se expressam na miséria dos moradores do Pinheirinho. A maioria é constituída de operários de fábricas próximas e empregadas domésticas, bem como idosos e diversas crianças que nasceram e cresceram lá. Não à toa, diversos moradores são negros. Quando em 2010 a polícia invadiu o bairro a procura de armas roubadas do batalhão da PM, um soldado perguntou a um garoto de oito anos onde estariam as armas. Sua resposta foi clara, disse que não tinha nem luz nem água em casa, como teria armas?
Uma guerra anunciada
Entretanto o que alguns setores da sociedade tentaram demonstrar é que o que está em jogo é o direito à propriedade privada. Como sobrepor o direito à propriedade privada de um senhor aos direitos mais básicos de quase 10 mil vidas humana? É uma questão de ponto de vista jurídico ou de posicionamento político?
Nessa discussão alguns setores da sociedade penderam para a questão do ponto de vista jurídico. Expressaram que a ocupação para moradia na verdade era uma invasão criminal, que os “invasores” criaram um exército assassino para defender algo que não lhes pertence. Como se o exército de Brancaleone simbolizasse a criminalidade em toda a sua completude. Cada vez mais o caráter político e social da situação perdeu espaço para o caráter criminoso. O que os quarenta homens do Pinheirinho desejaram mostrar com seus canos de pvc, paus de madeira com pregos, coletes à latas de lixo e capacetes precários é a correlação de forças extremamente desigual comparada aos cerca de 1700 homens que se direcionavam com canil, fuzis, espingardas, bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral, etc.
Quando tentava adentrar o perímetro criado pela PM em torno do bairro, me deparei com dezenas de soldados carregados de armas impedindo a passagem de automóveis. O clima era de guerra. Os moradores estavam aptos a resistir até morrer. Alguns falavam em atear fogo no próprio corpo caso a reintegração fosse efetivada. Esse espírito não foi motivado pela orientação oportunista de partidos de esquerda como PSOL e PSTU como algumas pessoas querem acreditar. Ele foi causado pela necessidade de luta dos moradores, de defesa da única coisa que eles possuem.
Caso isolado ou miséria histórica?
O panorama instaurado nos ensina que o Pinheirinho não é um caso isolado. Só em São José existem dezenas de ocupações ditas ilegais. Pelo Brasil afora diversos movimentos sociais que lutam pelas mesmas reivindicações são constantemente reprimidos de forma violenta por uma das polícias mais assassinas do mundo inteiro. Frequentemente o poder público desrespeita a Constituição brasileira ao não fazer valer concretamente vários direitos sociais consagrados constitucionalmente. E ao desrespeitar alguns direitos, indivíduos são beneficiados em detrimento da massa, cuja miséria é historicamente reafirmada.
A questão principal gira em torno da dicotomia conjuntura/estrutura. A miséria do povo brasileiro é um problema de conjuntura ou de estrutura? As ações exacerbadas que se repetem incessantemente em ações políciais são problemas de conjuntura ou de estrutura? A necessidade de ocupações de terras alheias pela reformulação da função social da área é um problema de conjuntura ou de estrutura? A desigualdade e a injustiça social é um problema de conjuntura ou de estrutura?
Em defesa da luta dos moradores do Pinheirinho, cito uma frase presente no “Manifesto dos moradores do Pinheirinho aos Soldados” que estava sendo distribuído na frente do bairro, às quatro da manhã da terça feira do dia 17 de janeiro, uma hora antes do batalhão militar iniciar o banho de sangue: “Quando o poder é tirânico, a revolta é um dever.” São Tomaz de Aquino.
Guilherme Kranz
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